Gerador.eu: 'A taxonomia e verdadeiro significado de «verde'
A taxonomia e verdadeiro significado de «verde»
Pensada no âmbito do Pacto Ecológico Europeu como um instrumento que permitiria distinguir, de uma vez por todas, as oportunidades de investimento ambientalmente sustentáveis das demais, a taxonomia verde – sistema que classifica as atividades consoante a sua sustentabilidade ambiental para efeitos de investimento – acabou por se transformar, na visão de alguns líderes europeus e cientistas, num exemplo de como, por vezes, as medidas efetivas contradizem os objetivos anunciados. É que, apesar de visar servir como orientação dos fluxos de capital para fins mais amigos do planeta, esta ferramenta acabou, através de um documento aprovado este ano pelo Parlamento Europeu, por atribuir à energia nuclear e ao gás natural o rótulo de «verdes».
«Tendo em conta os pareceres científicos e o atual estado das tecnologias, a Comissão Europeia considera que os investimentos privados em atividades no setor do gás e da energia nuclear têm um papel a desempenhar durante a transição», explicou Bruxelas, em comunicado, defendendo que as atividades selecionadas estão «em consonância com os objetivos climáticos e ambientais da União Europeia» e até permitirão «acelerar a transição» para um futuro com impacto neutro no clima, baseado essencialmente em fontes de energia renováveis.
Esses argumentos não chegaram, contudo, para convencer nem alguns dos estados-membros – a Áustria, por exemplo, ameaçou levar a Comissão Europeia ao Tribunal de Justiça da União Europeia, considerando que está em causa uma «lavagem verde» dos investimentos ligados à energia nuclear e ao gás –, nem os especialistas, que continuam a dizer que essa foi uma decisão errada e contraditória.
«Nem o nuclear nem o gás natural podem ser considerados tecnologias que representam um investimento verde», defende Susana Fonseca, membro da direção da associação ZERO. E detalha: «mesmo sendo uma tecnologia de transição, não nos parece que qualquer combustível fóssil deva ser classificado como “verde”».
«Nem o nuclear nem o gás natural podem ser considerados tecnologias que representam um investimento verde»
Susana Fonseca, membro da direção da associação ZERO.
«Há uma falta de coerência entre o que se apregoa e a realidade dos incentivos financeiros»
Francisco Guerreiro, eurodeputado do grupo Verdes/Aliança Livre Europeia
No caso da energia nuclear, a especialista salienta que há «riscos» associados e destaca que os resíduos produzidos por esta via «ficam para as próximas gerações», além de esta ser uma fonte que, por um lado, não consegue «responder a tempo às metas definidas de neutralidade carbónica», e, por outro, requer muito investimento, mais do que as energias renováveis.
Também Luísa Schmidt vê nesta classificação um «erro inaceitável». «Essas energias não são verdes», insiste. «Compreendo que uma transição é isso mesmo: um período de tempo para mudar, para fazer uma série de mudanças», reconhece, mas atira: «Preferia que tivessem dito que não conseguiam fazer esta mudança rápida em tão pouco tempo, com estas necessidades que estão a ser criadas. [Diriam]: há aqui uma transição que tem de ser feita, e nós, temporariamente, não podemos desativar as centrais nucleares e até, se calhar, [temos de usar] alguma de carvão e de ir buscar o gás a outros países. Mas não [deviam] chamar-lhes “verdes”. Isso é completamente contraditório.»
«Não faz o menor sentido», concorda Joana Portugal, que salienta que as infraestruturas que sejam agora criadas para estes fins irão manter-se em funcionamento nas próximas décadas. «E quando falamos de uma neutralidade climática, em 2050, a conta não fecha. Como é que hoje estamos a implementar, por exemplo, um gasoduto que vai estar em funcionamento durante os próximos 40 anos, quando nos comprometemos, em paralelo, a ser neutros climaticamente?», questiona a cientista.
Já Tiago Domingos realça que o problema está no próprio desenho da taxinomia verde e não tanto nas energias incluídas. «A taxonomia verde é, pura e simplesmente, um instrumento de política errado. Não deveria existir», defende o professor auxiliar da Área Científica de Ambiente e Energia do Departamento de Engenharia Mecânica do Instituto Superior Técnico (IST), que, em alternativa, considera que seria mais útil ter regulamentação ambiental adequada, que guiasse os investidores. «A taxonomia verde cria um debate estéril», observa, sublinhando que não há «tecnologias perfeitas».
«A taxonomia verde é, pura e simplesmente, um instrumento de política errado. Não deveria existir»
Tiago Domingos, professor auxiliar da Área Científica de Ambiente e Energia do Departamento de Engenharia Mecânica do Instituto Superior Técnico (IST)
Em contraste, Luís Guimarais, cofundador da RePlanet Portugal, mostra-se contra a «demonização» da energia nuclear. Doutorado em Física, e com 15 anos de experiência de trabalho em fusão nuclear, o representante enfatiza que as emissões de carbono associadas a esta energia acontecem «principalmente na construção» das centrais. Além disso, defende que esta alternativa energética é eficiente e rentável. Sobre a taxonomia verde, diz que é «uma decisão política, como tudo na energia», e refere que a mesma tem «asteriscos enormes», nomeadamente em relação ao gás, que pressupõe o desenvolvimento de um sistema de recaptura de dióxido de carbono, que ainda não existe comercialmente. «Uma entidade privada que queira entrar num projeto de gás ou de nuclear e cumprir aqueles critérios é considerado sustentável, portanto, tem taxas de empréstimo mais baixas. É só o que aquilo quer dizer», explica.
Em Bruxelas, apesar da decisão do Parlamento Europeu, as críticas continuam a ecoar. A voz de Francisco Guerreiro, eurodeputado do grupo Verdes/Aliança Livre Europeia, é uma das que continuam a alertar para a contradição que está a ser cometida. «Estamos a dar um incentivo ao gás natural, que é uma fonte muito poluente. Estamos a beneficiar esta indústria e a garantir que permanece mais tempo na economia. Quanto ao nuclear, nos períodos de seca, estas centrais terão de fechar, o que fará disparar o preço da energia. É um não debate», afirma, defendendo que é preciso, em contraste com o que está a ser preconizado, descentralizar a energia, levando as cidades a consumir a energia que elas mesmas produzem.
Apesar de tudo, para o eurodeputado, esta não é a única contradição gritante entre as políticas comunitárias e os objetivos anunciados: o que tem sido feito na agricultura também é um flagrante exemplo. Segundo Francisco Guerreiro, quase um terço do orçamento da União Europeia é dedicado à Política Agrícola Comum (PAC), mas as verbas destes programas continuam a ser direcionados para as indústrias poluentes e intensivas, o que é incoerente com a necessária estratégia de defesa da biodiversidade e de consumo mais local dos alimentos. «Há uma falta de coerência entre o que se apregoa e a realidade dos incentivos financeiros», critica, avisando que são os grandes produtores (e não os pequenos e médios) a receber o financiamento reservado para a agricultura. «A indústria agroalimentar e pecuária são um grande lóbi», atira o eurodeputado.
Além disso, o político explica que essa incoerência é explicada pelos ciclos políticos de quatro anos, que não tornam atrativo abordar esses desafios mais amplos e prolongados no tempo.
«Uma entidade privada que queira entrar num projeto de gás ou de nuclear e cumprir aqueles critérios é considerado sustentável, portanto, tem taxas de empréstimo mais baixas.»
Luís Guimarais, cofundador da RePla
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