Rádio Renascença: 'Documentário português quer desmistificar o veganismo e combater o status quo da indústria pecuária'

Rádio Renascença: 'Documentário português quer desmistificar o veganismo e combater o status quo da indústria pecuária'

  • Segunda-feira, 22 de Abril de 2024

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A Renascença conversou com o eurodeputado Francisco Guerreiro e o realizador Hugo de Almeida sobre o filme "Carne: A Pegada Insustentável" que já está disponível gratuitamente online.

O veganismo "não é um bicho de sete cabeças" e é preciso mudar o status quo da indústria pecuária, que está a deixar marcas negativas no Ambiente e na Saúde das pessoas. São algumas das mensagens do documentário português "Carne: A Pegada Insustentável" que está disponível gratuitamente online.

A produção que pretende ser um "documento aberto" para que as pessoas possam dialogar sobre este tema e "tentar chegar a um consenso sobre o que é melhor para nós e para o planeta", é realizado por Hugo de Almeida que se junta ao eurodeputado independente Francisco Guerreiro - membro do grupo parlamentar europeu dos Verdes. Trata-se da segunda colaboração entre ambos, depois da série documental "RBI: Um Caminho de Liberdade", lançada em 2021.

À Renascença, Hugo de Almeida conta que, depois da primeira parceria, surgiu a ideia de abordar a questão do veganismo, porque "havia um buraco na exploração desta ideia, em Portugal". Também Francisco Guerreiro refere à Renascença a importância de "descomplicar um tema bastante estrutural, profundo, complexo, com muitas variações"

 

"O Hugo conseguiu tratar esta complexidade de forma muito simples, muito acessível, numa narrativa muito próxima, evitando aquela tendência de julgamento moral que existem em certos documentários", avalia o eurodeputado, que aponta que o tema do que comemos desperta sempre reações emocionais sensíveis.

Desmistificar o veganismo

A prevalência e valorização do consumo de carne, nomeadamente dentro da sociedade portuguesa, é um dos pontos abordados pelo documentário e o realizador realça que "está enraizado do ponto de vista cultural e psicológico". "Temos momentos de felicidade ao consumo de carne, associamos a momentos de desenvolvimento da nossa sociedade. Agora, perante todos os estudos que existem, de que este modo de vida está a destruir o planeta e a nossa saúde, é difícil dizer às pessoas que isto faz mal. É bem mais complexo do que uma questão de nutrição", aponta Hugo de Almeida.

É, por isso, necessário "desmistificar a ideia de que comer carne é a única forma de sermos saudáveis". E desmistificar é uma dos verbos que melhor define os objetivos do filme. Ao longo da sua hora e um quarto de duração, "Carne: A Pegada Insustentável" enumera e explica os diferentes tipos de dieta que podem reduzir, quer mais ligeiramente, quer mais significativamente, o consumo de carne.

Francisco Guerreiro refere que, ao longo da longa-metragem, "desconstroem-se vários mitos e transforma-se o negativo em algo positivo", dando exemplos de comunidades, projetos e negócios relacionados com a redução do consumo de carne e promoção do veganismo que obtiveram sucesso.

O filme vai de Paredes de Coura, onde se encontra o Clube Vegetariano Quinta das Águias que organiza um Congresso Internacional Vegan, a Beirute, no Líbano, onde existe um hospital que oferece refeições exclusivamente vegetarianas e vegan aos seus pacientes.

O documentário demonstra, ainda, como o veganismo "não é uma moda" contemporânea, mas sim uma prática e corrente de pensamento com séculos de existência. Hugo de Almeida indica que "a nossa génese vem de uma alimentação plant-based".

"Temos que olhar para isto como um voltar às nossas raízes. A nossa dieta não incluía uma grande quantidade de carne. Por causa da globalização, deturpamos a nossa própria dieta nativa. A nossa História ensina-nos muita coisa", afirma o realizador.

Já Francisco Guerreiro destaca um segmento do documentário em que se recorda a censura do Estado Novo a associações vegan que existiram e desenvolveram pensamento em Portugal sobre o vegetarianismo no início do século passado. O eurodeputado lamenta que, hoje em dia, "haja um conservadorismo gigantesco por parte de grupos políticos", promovido "pelos grandes lobbies agroindustriais".

"É quase uma rebeldia do pensamento cultural e social que acaba por emergir", acrescenta.

O elefante na sala que todos ignoram

A partir do tema central da produção de carne, o documentário aborda as consequências económicas, sociais, psicológicas e ecológicas e exemplifica, igualmente, o impacto na saúde individual dos consumidores. São muitos aspetos, histórias e testemunhos que procuram demonstrar a interligação que pode escapar da perceção comum.

Hugo de Almeida reconhece o interesse artístico em retratar um assunto "ultracomplexo", contudo reconhece que, nos 75 minutos do filme, ainda houve muitas matérias que ficaram de fora, como a indústria da pesca, o consumo da água da indústria pecuária, entre outras.

Algo que era incontornável e não podia ficar de fora era a questão da crueldade animal. "Carne: A Pegada Insustentável" contém imagens gráficas, porém em baixo volume. O objetivo nunca era chocar as pessoas, apesar de se abordar esta faceta da indústria pecuária.

Se o impacto ecológico da produção de carne é uma educação científica que continua a ser explicada e estudada dentro da sociedade civil, as condições de criação e métodos de abate de animais são um ponto de discussão há décadas dentro do mundo Ocidental. Não obstante a falta de novidade, pouco foi feito para se alterar estas práticas.

É o elefante na sala que todos aceitaram ignorar? Hugo de Almeida responde que é uma "dissonância cognitiva muito pessoal" de cada indivíduo. "Somos nós próprios que temos de nos perguntar por que é que não vemos essa violência ou a aceitamos. É como o exemplo da roupa. Vem de trabalho infantil, mas continua-se a comprar por ser barato. Na questão da carne é a mesma coisa", refere.

"Não é o que nos mostram ou deixam de mostrar. Um animal não quer morrer com seis meses de vida. Tem instinto de sobrevivência. Somos nós que temos de fazer esse trabalho", adiciona.

Francisco Guerreiro aponta que o complexo agroindustrial tem a capacidade de "criar mitos bucólicos", através de "mecanismos de propaganda e marketing muito fortes", para moldar a perceção do cidadão e a sua relação com o produto alimentar que compra nos supermercados.

"Não vê o animal no bife. Não vê a exploração como ela é. Não percebe o consumo hídrico de um quilo de bife, os impactos do metano e do carbono. Desafio alguém a visitar um matadouro e não sair de lá vegetariano. Há razão para estas unidades serem fechadas, pouco acessíveis e nem contarem com sistema de videovigilância", exemplifica.

"Hipocrisia" na Europa e debate "fraco" em Portugal

Ao longo da conversa com a Renascença, Francisco Guerreiro vai realçando a ligação intrínseca entre a discussão à volta da produção e consumo de carne a a política. Refere, em muitos pontos, como o status quo é protegido por lobbies da indústria pecuária junto dos partidos tradicionais, que legislam e votam contra iniciativas mais disruptivas.

Eurodeputado independente desde 2020, depois de se ter desvinculado do PAN, o seu mandato europeu está a findar. Quatro anos de trabalho depois, sente que "as instituições europeias são completamente hipócritas".

"Desconsideram os dados climáticos, que apontam que é impossível atingir às metas de descarbonização, se não mudarmos o sistema agroalimentar que tem um impacto gigantesco nas emissões de gases com efeito estufa. Mesmo nas cantinas do Parlamento Europeu não existe uma opção vegana, somos remetidos constantemente para a secção das saladas. Existe uma imensa hipocrisia. Se nas próprias instituições não existe esta vontade de responder às pessoas, muito dificilmente isso se fará em legislação", considera.

Francisco Guerreiro esclarece que há "duas grandes maiorias" na União Europeia: os poderes instituídos, legitimados através do voto nos grandes grupos políticos (Liberais, PPE, e S&D, onde se inserem PS, PSD e CDS) e a maioria das iniciativas de cidadão.

As iniciativas legislativas de cidadão exigem de mais de um milhão de assinaturas válidas em, pelo menos, sete Estados-membros para chegar à discussão no Parlamento Europeu. Francisco Guerreiro lamenta que, na maioria dos casos, a discussão destas iniciativas "resulta num nada".

Nas Europeias de 2024, espera-se um reforço da extrema-direita nas urnas. Para o eurodeputado independente, trata-se da presença mais prevalente de forças "conservadoras, anti-projeto europeu e negacionistas climáticas" e acusa Ursula von der Leyen de se preparar para aliar a estes grupos políticos.

"É um atentado ao projeto europeu. A ser a presidente da Comissão Europeia, tem de pôr na balança se prefere um acordo generalizado com as forças progressistas, ou se prefere ceder ao populismo barato e cair na ratoeira da extrema-direita", aponta.

Já, em Portugal, com a exceção dos episódios de campanha com ativistas ambientais, o Clima e o impacto da indústria pecuária ficaram fora dos debates e dos discurso das principais figuras políticas. Para Francisco Guerreiro, a ausência de discussão "não é por falta de alternativas", dando o exemplo da "oportunidade gigantesca" da área costeira portuguesa.

O eurodeputado lamenta que se olhe para o tema "como algo destruidor, em vez de algo transformador" e acredita que o Ambiente "foi desconsiderado" durante as Legislativas. "Estamos próximos de um colapso ecológico e o debate político foi muito fraco", avalia, ainda.

Depois de estrear a 25 de novembro do ano passado, "Carne: A Pegada Insustentável" encontra-se agora em circuito por festivais de Cinema, tendo já passado pelo Fantasporto, em março.

O filme arrecadou o prémio de "Melhor Documentário" no Frankfurt Indie Stars Film Festival

O documentário pode ser visto gratuitamente na plataforma WaterBear.

Lê a entrevista aqui


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