Expresso: 'Por que precisamos parar a máquina antropológica'

Expresso: 'Por que precisamos parar a máquina antropológica'

  • Quarta-feira, 17 de Abril de 2024

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As relações objetivas dos animais entre si foram transformadas em relações subjetivas do humano com o animal, quer sob o ponto de vista de uma imaginação coletiva, quer em termos de um entendimento social e simbólico, quer ainda em termos de um pragmatismo extrativista.

Edmond Jabès, em O Livro das Questões, interroga-se sobre qual o nome a dar ao silêncio. Para o poeta, o silêncio é uma ferida, um verbo-ferida, cujo mapa, de “tanto que o mundo se mistura connosco”, pertence à ordem do ausente, de um esquecimento que é a queda das coisas e dos seres. Tal queda não é meramente aparente ou literária – é percetível, é um evento. O documentário de Hugo de Almeida, “Carne: A Pegada Insustentável” (2024), pode ser visto como um desses eventos, mas eu preferiria assinalá-lo aqui como um “devir”, para usarmos um termo deleuziano. Produzido pelo eurodeputado Francisco Guerreiro, tal documentário constitui-se num “devir animal”, um objeto para, de forma desterritorializada, nos perguntarmos sobre a ferida aberta que é a nossa vida, humana e não humana. Um tal devir surgiu em mim na figura de um furor, logo após a primeira visualização do documentário no Cinema Batalha, no dia oito de março, no Porto. E da segunda vez, vinte dias depois, na Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto, experimentei o mesmo furor, mas agora sob a forma de uma aliança e simbiose, ambas conectadas com a afetação que o documentário instala em nós. A afetação comporta uma forte dualidade – o afeto não corresponde apenas a um sentimento pessoal, ou a uma mera característica emocional; ser-se afetado significa experienciar uma perturbação, uma potência além do eu, uma multiplicidade. Como num bando, ou em matilha, tal furor produziu em mim a vontade de um agenciamento para nele operar o meu próprio devir animal. Hugo de Almeida sabe desmontar a narrativa naturalizada que associa o consumo de carne a um ideal de humanidade bondosa, benigna e afetuosa na relação que preserva com os animais não humanos, ainda que historicamente sujeitos a dispositivos de abuso e violência perpetuados pela ação humana, e dos quais derivam os atuais sistemas de exploração animal e de produção intensiva dos seus modos de vida e sofrimento. É neste preciso ponto que se torna urgente pararmos a máquina antropológica, suspender, nem que por uma coexistência de durações, os seus mecanismos de legitimação e opressão. A produção de agenciamentos, sejam políticos, éticos, de jurisprudência, ou sejam ainda no âmbito do pensamento psicológico e da pedagogia das nossas condutas, é um gesto vital perante as forças populistas que temos a enfrentar. Aquele meu furor, da segunda vez que me confrontei com o filme de Hugo de Almeida, ressurgiu na forma de uma perplexidade perante a defesa, num dos comentários aludidos durante o debate moderado por mim e que aí teve lugar em cooperação com a Associação Vegetariana Portuguesa, de que as questões alimentares não deveriam constituir objeto de política. Desde logo, veio-me à cabeça a expressão de Derrida, ecce animot, e a ideia segundo a qual a política é um lugar (polis). As tradições imperialistas e nacionalistas que, pelo menos desde o séc. XVIII, deram corpo aos Estados-Nação europeus (e doravante aos totalitarismos do séc. XX), politizaram a máquina humanista através de um jogo de articulações e oposições, como tarefa da própria ideia do homem humano, separado de uma animalidade considerada homogénea e vertiginosa. Kant, aliás, nas suas reflexões sobre educação, considera primordial que uma das finalidades da educação formal moderna seja a de separar a criança da sua animalidade. Mas há uma narrativa anterior, fundada no ideal da busca da verdade pela luz natural, e cujas coordenadas podemos encontrá-las em Descartes. Não só o ergo sum surge separado do corpo, como toda a ideia de cogito é reforçada pela promessa da razão humana, ao serviço de uma ciência experimental e em nome da civilização da técnica. A maior parte das narrativas modernas europeias, desde o Iluminismo ocidental, considera que a humanidade será sempre capaz de atingir os objetivos aos quais se propõe alcançar. No interior desta vontade reside a fé histórica na ação humana e nas coisas boas que ela é capaz de produzir – poesia, religião, arte, filosofia. Mas acontece que há muito que tais coisas foram ultrapassadas pelos desígnios da fé. Walter Benjamin, quando escreve sobre o desenho de Paul Klee, Angelus Novus (1920), é eficaz na descrição de uma história humana cujo anjo se ergue sobre as ruínas, de costas voltadas e de asas desfraldadas, diante da tempestade que é o progresso. A ideologia humanizadora que sustenta a máquina antropológica constitui-se, portanto, numa ideologia profundamente territorializada, solidária com uma ideia de pós-história, cuja ferida aberta foi tornada em espetáculo, economia utilitária, usura. Todavia, historicamente, esta ideia de humano corresponde a um campo de tensões dialéticas – agenciadas numa “rizosfera”, diria Deleuze – retalhado por cesuras e negatividades cujas dinâmicas separam a animalidade “atropófora” e a humanidade que nesta se incarna. Tudo aquilo que é da ordem do indeterminado – a vida – passa deste modo a ser articulado e dividido por uma série de oposições e cesuras. Ora, é justamente porque vivemos dentro da catástrofe que nos devemos perguntar: onde se encontra a animalidade do humano na pós-história? Não que eu idealize uma suposta humanidade animal resgatada pelo património biológico das nações e sua progressiva generalização e governo. As relações entre animais humanos e não humanos foram sempre pensadas enquanto conjunções de um corpo com um logos, de um elemento natural – reduzido ao animal – e de outro sobrenatural – elevado à categoria de social ou de divino. Mas, em O Aberto, Agamben é certeiro: o humano “resulta da desconexão destes dois elementos”. Interrogarmo-nos e refletirmos sobre o que no humano foi separado do não humano é hoje muito mais urgente do que adotar posições sobre os “supostos valores e direitos humanos”. Porque a “limitrofia”, nas palavras de Derrida, através da qual animais humanos e não humanos foram separados e estruturados, joga com todo um evolucionismo historica e ideologicamente enraizado na nossa cultura. Tal conceção, apoiada ainda pela perspetiva estruturalista das representações animais – e de que o arquétipo junguiano é um essencialismo entre outras variações antropomórficas – ativa em nós, de forma sucessiva, a máquina do humanismo com todos os seus modelos e razões de série. Uma tal máquina opera por diversos meios: seja por semelhança hierarquizada, seja por espelho ou por imitação, seja ainda por ordenação, tornando impossível a ideia de uma “evolução-produção”, nos termos de Deleuze. Ora, se se admite o fim da história, ter-se-á de admitir, porém, que continuamos a falar do humano e sempre do seu desaparecimento enquanto tal. O aniquilamento do humano suporá, portanto, e necessariamente, o desaparecimento da linguagem humana, mas só e apenas enquanto rasto. Uma visão que traga à superfície a iminência do fim é uma visão que continua a carregar a antropogénese das origens humanas, nem que seja enquanto paródia. Hugo de Almeida não faz esse exercício, ou seja, o furor que em mim se instalou não proveio da imagem de uma hecatombe que o documentário eventualmente poderia espoletar. A realização do filme corresponde a uma experiência total, mas de natureza sensorial, através da qual a reflexão sobre o superior interesse do animal contrasta com a matriz objetificante, desindividualizadora e dicotómica na qual assenta, não só a perceção, mas principalmente a práxis que pomos a uso na relação com os animais não humanos. Nessa medida, o documentário politiza a problemática da alimentação, mas fá-lo através de um discurso testemunhal e aberto à experiência da escuta, sobretudo da contra-narrativa, das imagéticas e das representações consumadas, bem como dos discursos oriundos de uma linguagem hegemónica. O que entra em jogo, portanto, é o questionamento da nossa própria espécie e o princípio ético que, inevitavelmente, a afeta.

Julgo que é justamente devido a um tal princípio que grande parte dos debates sobre alimentação, e sobretudo acerca do veganismo, surge quase sempre na defensiva, como se tais coisas viessem ameaçar as regularidades de um triunfo humanitário que, desde sempre, soube gerir e nutrir, de forma justa e igualitária, as diferentes necessidades das nações e os seus diversos meios de produção. Sabemos que tal não passa de uma fantasia, e que a justiça e a igualdade, no que concerne a alimentação a uma escala global, não são atributos representativos de uma ação política situada e socialmente comprometida. Daí o receio, apontado por Agamben, ao referir-se à despolitização das sociedades humanas e ao consequente alastramento incondicionado da economia. Uma tal despolitização revela-se perigosa, mas ao mesmo tempo leva à assunção da vida biológica, continua ele, como “tarefa política suprema”. Na verdade, e esta é uma dimensão que de algum modo dilacera os cânones culturais e as tradições alimentares, é a própria vida natural e o seu bem-estar que hoje se apresentam como a última tarefa histórica da humanidade. Todavia, uma máquina antropológica sempre operou por taxonomias e diferenciação de espécies claramente definidas. É a produção e a definição de uma natureza do humano que origina e expande a automata mechanica. Mas a história das ideias nunca deveria ser contínua. As relações objetivas dos animais entre si foram transformadas em relações subjetivas do humano com o animal, quer sob o ponto de vista de uma imaginação coletiva, quer em termos de um entendimento social e simbólico, quer ainda em termos de um pragmatismo extrativista. Ao mesmo tempo, uma definição sacrossanta da vida humana, por contraponto à dos animais, acrescenta à máquina antropológica um mecanismo tautológico, ao qual corresponderá mais tarde um dispositivo irónico de verificação e reparação de uma natureza humana que a todo o instante se vê ofuscada. Ao manifesto do humanismo associar-se-á a discursividade dominante da dignitas e da sensibilitas, ambas produzidas e reforçadas pelo especismo moderno. É justamente este o dispositivo que precisamos suspender, enquanto a máquina não para. Tal dispositivo ocupa-se obsessivamente do discurso das origens e das metamorfoses graduais, identificando o humano como o homem falante e que põe fora de si uma alma em forma de linguagem. Tal ideologia moderna não se estabeleceu apenas de modo tácito na cultura contemporânea. Ela é o reflexo filosófico do humano entendido como pressuposto; dir-se-ia, de resto, que toda a filosofia de Aristóteles a Heidegger, de Descartes e Kant, de Levinas e Lacan, nunca se ocupa dos animais, antes do animal, supondo aí um singular, como se todos os viventes pudessem ser reagrupados no “sentido comum desse lugar comum”, diria Derrida. Ora, enquanto tal “limitrofia” for entendida precisamente como uma falha, ao invés daquilo que nasce e cresce (no limite), ao redor do limite, mantendo-se no limite e dele alimentando-se, nela continuará em jogo a oposição humano/animal, reproduzindo estados de exceção (através da poesia, da arte ou da religião) e formas de continuidade homogénea (fruto da despolitização). Uma máquina antropológica será sempre uma máquina de poderes-saber, porque estabelece uma ontologia da qual os animais são privados na sua singularidade e devir. A forma de uma impotência, uma potência de-não, voltando a Agamben, poderá, contudo, conceder à máquina uma possibilidade de rutura com a antropogénese dominante. Mas é certo que o jogo de articulações continuará a alimentar e a repetir o dispositivo. Trevas e luz, matéria e espírito, vida animal e logos, tais articulações inscrevem-se na cultura e no conhecimento modernos enquanto dualismos e hostilidades face ao receio de as suas forças se confundirem. Assim, a máquina opera por mecanismos defensivos, reagindo sobretudo pela renúncia a um diálogo que opere por “involução”, diria Deleuze, isto é, por propagações, contágio e “inter-reinos”, num contexto que será sempre de multiplicidade de formas heterógenas.

Mas há igualmente um pathos que percorre a trama filmada por Hugo de Almeida: falo novamente do lugar (polis) para nele interpretarmos a compaixão, compartilharmos o sofrimento entre os viventes, participarmos do direito, da ética e da política enquanto “laços de amizade”. O poder pode manifestar-se numa paixão, não pelo logos ou pela phoné da existência humana; falo de um poder testemunhar, de um poder aberto ao vulnerável que nos atravessa, exigindo de nós uma espécie de “animal-estar”, nas palavras de Derrida, e para o qual só podemos servir-nos de palavras nuas, palavras do coração. “Carne: A Pegada Insustentável” comporta uma ontologia de deslocamento do humano, um lapso, uma queda, uma falha, um sintoma, cuja dinâmica coloca-nos num “estar-com, num estar-junto, num estar-perto” – usando os termos de Derrida – porque “o animal está aí antes de mim, perto de mim, diante de mim, que estou atrás dele”. Portanto, é “depois e perto do que chamam o animal” e, sobretudo, com ele que esta ontologia corresponde a uma alteridade absoluta, através da qual cada vivente, numa irredutível multiplicidade, se autobiografa num diálogo silencioso. E este é o diálogo verdadeiro, o diálogo “das mãos e das pupilas”, voltando a Edmond Jabès. A discriminação com base na espécie não pode continuar a alimentar a máquina antropológica. “O animal que logo sou”, título derridiano, jamais pode autorizar-me a viver dentro desse mecanismo. A ontologia de Hugo de Almeida é uma rasura do ser, ela contém e propaga uma fala múltipla, tal como o animot de Derrida, em cujo neologismo conseguimos escutar o plural de animais no singular. 

O documentário de Hugo de Almeida ficará disponível nas redes sociais de Francisco Guerreiro a partir de 22 de abril e igualmente numa plataforma de streaming internacional, anunciada em carnedoc.com.

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